Miguel Jorge*
O G-8 parece viver crise que, se não superada, multiplicará o número de pobres. Participante nenhum da Rodada Doha, recém-encerrada no Catar, definiu melhor o fracasso dessa reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) que o ministro do Comércio e Indústria da Índia, Kamal Nath, para quem a não liberalização do comércio global coloca o mundo a meio caminho entre a UTI e o crematório. Aprovada em 2001 por mais de 140 países, para dar espaço às economias dos países em desenvolvimento, a Rodada Doha mostrou que Estados Unidos e União Européia conhecem a fórmula dessa abertura, mas carece de vontade política, poder de decisão ou, talvez, de inteligência, para concretizar essa meta. Ou até se possa dizer que, com sua intransigência, os presidentes George Bush e Jacques Chirac ocupam cadeiras antes reservadas aos estadistas de verdade, aqueles que acreditavam na utopia de um mundo com menos pobreza.
Assim, seria mesmo impossível para o G-8 – os sete países mais ricos do mundo e a Rússia, cujos subsídios para a agricultura, indústria e serviços, somados aos de outros países, já atingem US$ 1 trilhão por ano – compreender que por trás dele, há países condenados ao atraso e à fome. Com a permanência do impasse agrícola, o G-8 parece viver uma crise de alienação que, se não superada – as negociações foram interrompidas por tempo indeterminado –, multiplicará o número de pobres, para os quais uma solução depende, sobretudo, do próprio G-8.
Resta, então, uma vaga esperança de que haja um acordo até meados de agosto, com vistas a mais flexibilidade nas posições de Washington e Bruxelas, que travam intensa luta diplomática para evitar cortes de suas tarifas de importação e de seus subsídios. Vaga, também, porque a ajuda da administração Bush aos agricultores americanos cairia de US$ 22 bilhões para US$ 18 bilhões, desde que a União Européia cortasse também a sua e os países emergentes, entre eles o Brasil e a Índia, fizessem o mesmo. É impensável que tivesse sido esse o rumo escolhido, quando os países ricos não ignoram que protecionismo pode trazer votos, sim, mas reduz o comércio global, estimula o fechamento de mercados, freia a competitividade, ameaça a geração de empregos, atrasa o crescimento e lança sombras sobre o futuro da OMC.
Tudo bem que o presidente Bush esteja em sua undécima hora das eleições parlamentares, que seu prestígio nos Estados Unidos caia a cada semana e que, desde sua posse, os adversários democratas apontem suas baterias contra sua política externa. Talvez isso explique, em parte, a posição americana contra a liberalização agrícola que, se alcançada na Rodada Doha, com abertura dos mercados e redução de barreiras dos países emergentes, segundo estudos recentes do Banco Mundial, teria permitido a entrada de US$ 287 bilhões na economia global, nos próximos três anos. Isso resgataria da pobreza nada menos de 66 milhões de pessoas que vivem na mais extrema miséria, centenas de milhares sobrevivendo com US$ 1,00 por dia. Os benefícios seriam claros para as nações mais pobres, de capitais escassos, democracias não consolidadas, populações sem trabalho e sem bem-estar social, além de outros avanços.
Cálculos do comissário de Comércio da União Européia indicam que os países emergentes do G-20 teriam vantagens equivalentes a US$ 86 bilhões por ano. Mas, agora, com o naufrágio da Rodada Doha e a queda – temporária ou não – do sistema multilateral de comércio, além de todos os países perderem, o Brasil também aparece como um dos mais derrotados entre aqueles cuja diplomacia se centrou na correção das distorções do comércio agrícola. Por ora, a mensagem do G-8 aos emergentes é clara: à exceção da China, que tem amplas condições de abrir espaço às suas exportações – mão-de-obra barata, alta taxa de crescimento, etc. –, e que Washington tem boas razões para cortejar, que os demais emergentes cuidem de si.
Quer dizer, se até meados de setembro os países desenvolvidos e os emergentes não firmarem um pacto para restabelecer o equilíbrio no comércio internacional, no qual todos concordem com as condições colocadas, as negociações levarão mais alguns anos. Nesse espaço de tempo, com o Mercosul servindo de palanque ao presidente Hugo Chávez, assistido pelo ditador cubano Fidel Castro, e uma explosão de assinatura de acordos bilaterais, não é preciso muita reflexão para se ver o beco no qual o Brasil entrou com o fracasso de Doha.
Com uma concepção terceiro-mundista de comércio exterior, não há muito a se fazer para enfrentarmos o cenário adverso que se aproxima. Com absoluta razão, a maioria dos analistas considera que o colapso de Doha poderá provocar uma tsunami protecionista no mundo, que já parece visível em ambos os lados do Atlântico. O lado bom de tudo isso – se é que há algum – talvez seja o de conscientizar os países desenvolvidos de que, com o fracasso da Rodada Doha, ninguém ganhou. ( Gazeta Mercantil -Caderno A - Pág. 3)
* Miguel Jorge, Jornalista, é vice-presidente de Recursos Humanos e Assuntos Jurídicos e Corporativos do Santander Banespa.
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