O desleixo sanitário
Editorial do O Estado de S. Paulo em 15/8/2006
Dez meses depois do último surto de aftosa em Mato Grosso do Sul, os cerca de 400 quilômetros da fronteira com o Paraguai continuam desprotegidos e abertos ao livre trânsito de animais, com apenas 12 postos de fiscalização e 5 equipes volantes para cuidar da defesa sanitária. O repórter José Maria Tomazella, do Estado, voltou à região e encontrou praticamente o mesmo quadro de abandono do ano passado, mas agora com um detalhe agravante: a escandalosa demonstração de indiferença das autoridades, apesar dos transtornos e prejuízos causados pela doença. Das 17 barreiras montadas naquela época, 12 foram desativadas.
Se houver animais doentes no lado paraguaio, poderão ser conduzidos facilmente para o Brasil, principalmente se o transporte for feito à noite, quando a vigilância, já escassa durante o dia, se torna praticamente nula. O presidente da Agência Estadual de Defesa Sanitária de Mato Grosso do Sul (Iagro), João Cavallero, acusou o Paraguai de exportar aftosa e omitir a existência da enfermidade em seu território.
Se ele acredita que é essa a situação, por que não procura reforçar a vigilância? Falham o governo estadual e o federal - este o responsável maior pela defesa sanitária no País. Se outros argumentos não bastassem, as autoridades federais deveriam levar em conta pelo menos a importância econômica do agronegócio.
Mas nem os bilhões de dólares de receita externa gerados pelo setor parecem despertar a atenção dessas autoridades. O orçamento da Vigilância Agropecuária (Vigiagro), responsável pela fiscalização de produtos de origem animal e vegetal importados e exportados, foi reduzido de R$ 8 milhões no ano passado para R$ 3,2 milhões.
No ano passado, foram destinados à Secretaria de Defesa Agropecuária R$ 169 milhões. No orçamento federal deste ano, as verbas foram reduzidas para R$ 142,8 milhões, mas nem esse dinheiro se tornou disponível. Com o contingenciamento de gastos, o total caiu para R$ 89,7 milhões.
O governo não aprendeu a dura lição do último surto de aftosa
De tão ostensivo, o desleixo acabou denunciado não só por empresários, técnicos e analistas do agronegócio, mas também por auditores do Tribunal de Contas da União (TCU). Em relatório divulgado há alguns dias, os técnicos do TCU enfatizaram a desproporção entre a importância econômica do agronegócio, responsável pela maior parte do superávit comercial brasileiro, e a escassa atenção dada ao setor pelo governo federal.
Descobertos focos de aftosa em Mato Grosso do Sul, 58 países criaram barreiras à importação de carne do Brasil. Problemas sanitários podem ocorrer mesmo nos países com vigilância mais estrita, mas o Brasil permanece especialmente vulnerável, porque o controle é exercido muito desigualmente no território nacional. Alguns Estados, como São Paulo, têm procurado manter bons sistemas de defesa, mas os cuidados são menores em vários Estados e muito insatisfatórios quando se trata do governo federal.
Um dos problemas centrais é a indefinição de prioridades do governo da União. O presidente da República e vários de seus ministros costumam citar, em discursos e entrevistas, o crescimento da exportação brasileira e o robusto superávit comercial conseguido nos últimos anos. Mas são incapazes de cuidar do comércio com a atenção necessária, porque não estabelecem escalas de importância para os diferentes programas e projetos sob sua responsabilidade.
Neste momento, o Brasil está sob a ameaça de suspensão de importações de vários produtos pela União Européia. Os europeus concederam ao governo brasileiro uma nova oportunidade para enfrentar os problemas do controle sanitário. Essa concessão é uma moratória, baseada na promessa de execução de um plano.
Se Brasília for incapaz de agir de acordo com a gravidade do problema, o País poderá sofrer enormes prejuízos no comércio internacional.
O relatório do TCU e a reportagem sobre as condições de fiscalização na fronteira com o Paraguai são alertas gravíssimos. Num dos postos de fronteira, os funcionários não dispõem sequer de eletricidade e de condições mínimas de segurança para sair à noite de seu abrigo precário. É essa a resposta às cobranças dos importadores?
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